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A COMPLICADA RELAÇÃO ENTRE MÉDICOS E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA

Pelo menos 64% dos médicos participantes de uma pesquisa feita no Brasil tiveram alguma relação com indústrias farmacêuticas.
O estudo do professor Mário Scheffer analisou a interação entre médicos e empresas produtoras de medicamentos antirretrovirais (ARVs) no contexto de uma política pública universal de tratamento do HIV e da AIDS. No Brasil os medicamentos ARVs não são comercializados no mercado, eles integram um programa público de distribuição gratuita no SUS e estão inseridos em diretrizes clínicas atualizadas periodicamente e aceitas pela comunidade médica.

"Por outro lado, os ARVs dependem de prescrição médica, vários desses medicamentos concorrem na mesma indicação terapêutica e constantemente são lançados novos produtos de marca patenteados, fazendo com que as empresas produtoras lancem mão de todos os recursos disponíveis para a conquista do mercado", diz Scheffer.

MÉDICOS E A INDÚSTRIA
Cerca de dois terços (64%) dos médicos que prescrevem ARVs declararam que tiveram alguma relação com empresas farmacêuticas, sendo mais frequentes o recebimento de publicações (54%), visita de propagandistas (51%) e de objetos de pequeno valor (47%). Com menor expressividade, declararam receber almoços ou jantares (27%), viagens para congressos nacionais (17%) e internacionais (7%), convites para participar ou conduzir pesquisa clínica (15%).

"A oferta e o recebimento de benefícios são mais expressivos conforme aumenta o tempo de experiência do médico com o tratamento de HIV e AIDS, o volume de pacientes e a idade", conta o pesquisador. "Também são mais significativos entre os médicos especialistas em infectologia."

O grande consumo de ARVs (antirretrovirais) no Brasil , graças à política pública de acesso universal, faz com as empresas farmacêuticas acionem as mais variadas estratégias de promoção, atividades informativas e de persuasão com o objetivo de induzir à prescrição, dispensação, aquisição pelo poder público e utilização de seus medicamentos.

"Neste sentido, o médico prescritor de ARV, que conta com o auxílio de diretrizes clínicas produzidas pelo programa governamental, mas também goza de autonomia profissional no momento da prescrição, passa a ser alvo prioritário do marketing promocional das empresas", afirma o professor.

ÉTICA MÉDICA??
O professor ressalta que no Brasil é incipiente o debate sobre os valores éticos que permeiam a relação entre os médicos e as empresas que fabricam e comercializam medicamentos.

"Também são tímidas as iniciativas na direção do aprimoramento da regulação da interação entre prescritores e indústria farmacêutica. O Código de Ética Médica, atualizado em 2010, as resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) são insuficientes", alerta.

"A maior divulgação e implementação das diretrizes clínicas do Ministério da Saúde para prescrição de ARVs é um dos caminhos para a garantia de que os médicos tomarão decisões exclusivamente de acordo com as credenciais científicas dos medicamentos, as recomendações padronizadas por um programa de saúde pública e as necessidades de saúde do paciente", conclui Scheffer.

Cada vez mais, a complexa relação entre médicos e indústria farmacêutica é discutida no mundo inteiro. São incontáveis os exemplos de problemas decorrentes dessa ligação e da forma como têm sido expostos, com evidente desgaste à imagem da corporação médica e impacto negativo para os pacientes e a sociedade de um modo geral. Por outro lado, é inquestionável a importância social e econômica da indústria farmacêutica e a inevitável existência de pontos de convergência entre ela e a medicina, tanto históricos quanto estratégicos. Nosso foco não será apontar exemplos de relacionamentos perversos entre médicos e indústria, mas estimular a reflexão sobre como podemos avançar nesta discussão a partir de cinco diferentes perspectivas.

1. DESCRIMINALIZAÇÃO DO DEBATE
Para lugar nenhum iremos quando buscamos somente e obsessivamente os “médicos corruptos”. Os Conselhos, de um modo geral, têm cada vez mais sinalizado que estão alertas e dispostos a punir, enquanto a mídia expõe sucessivos casos de graves violações de conduta. Isso tudo apenas aumenta a cortina de fumaça sobre o tema.

Outra cultura é necessária, na qual conheçamos e reconheçamos efetivamente como se dão as relações entre os médicos e a indústria farmacêutica, seja enquanto pessoas físicas ou por meio de suas entidades ou empresas. A evidência empírica demonstra que são absolutamente raros os casos em que médicos e representantes da indústria, ao se encontrarem, olham um para o outro e dizem: “somos eu e você, e dane-se o paciente”. No varejo, esses contatos costumam ocorrer entre profissionais dedicados, e, principalmente, com médicos bem intencionados, que acreditam estar fazendo boas coisas, ou, pelo menos, não prejudicando terceiros da maneira perversa como costumam apresentar.

Quem já acompanhou a organização de congressos de entidades médicas, muito possivelmente também se deparou com a dúvida: “estão pedindo isto, é?!” (referindo-se a patrocinadores). “Não será por uma palestra que comprometeremos o todo, não é?”. Quem não ficaria em dúvida? A cadeia de causalidade que vai do patrocínio à prescrição é longa, complexa, difícil de delinear e compreender e, se jogada no terreno da moralidade, geradora de barreiras cognitivas que tornam os profissionais impermeáveis ao debate.

Se os Conselhos precisam estar de prontidão para agir em face de condutas que mereçam punição, eles próprios devem propiciar e estimular fóruns de discussão e avaliação de caráter não punitivo; espaços capazes de ajudar os médicos a compreender e administrar eticamente essas relações; e a mediar conflitos de interesse que, per se, não podem ser caracterizados como antiéticos ou imorais, sob pena de criminalização do cotidiano das relações humanas.

2. FOCO NO PROBLEMA
Outro desafio é procurar separar essas questões de outras que, muito comumente, vêm em seu bojo: pautas ideológicas ou políticas, por exemplo. Tem sido frequente a instrumentalização desse debate por ativismos de todo tipo (anticapitalismo, antimedicina, antimedicações, antipsiquiatria e suas contrapartes), produzindo um cenário falsamente moralizado, artificialmente polarizado e, consequentemente, confuso, inviabilizando a construção de um espaço de “ética possível”, como se houvesse uma condição ideal a priori da qual não se pode abrir mão. A ética das relações humanas é uma construção histórica e social, portanto é possível sua existência em qualquer tempo, lugar ou sistema econômico.

Personalidades como Márcia Angell, mundialmente conhecida por importantes contribuições a esse debate, há muito perderam o rumo e passaram do ponto. Com sua opção militante estão mais atrapalhando do que ajudando.

3. MENOS CRÍTICAS E MAIS HIPÓTESES, EM BUSCA DE SOLUÇÕES
Qual o valor e a eficácia das declarações de conflitos? Quais as interfaces eticamente admissíveis? Quais os limites de cada interface e da relação dela com o todo? Como garantir diretrizes de maior qualidade e credibilidade? E na educação médica (básica ou continuada) e nos congressos, simpósios satélites e áreas de exposição, o que pode e o que não pode? Como verdadeiramente garantir que essas orientações sejam efetivas? Precisamos de novos modelos de financiamento para os eventos? Fundo único para os eventos anuais das sociedades oficiais e que emitem pontuação para a recertificação do título de especialista? Como pontua aquele profissional que já não aceita viagens e desejaria atualização profissional mais independente da indústria? O principal conflito de interesses a ser trabalhado entre os médicos é realmente o financeiro, ou o que envolve facilidades para reconhecimento e status?

4. MAIS CIÊNCIA E MENOS "ACHISMO": TESTAR, AVALIAR, REDISCUTIR, MODIFICAR
Possuímos experiência com evento grande, em resort de luxo, com mais de uma dezena de palestrantes internacionais, que foi destaque no jornal Folha de S. Paulo como evento livre de indústria farmacêutica. Percebemos que, na prática, não receber dinheiro diretamente da indústria, sem regular os conflitos dos educadores convidados, tem pouco alcance, com imenso aumento das dificuldades em viabilizar financeiramente a iniciativa. Portanto, a solução não é tão simples.

Em outro projeto bastante conhecido, no Rio Grande do Sul, de educação médica à distância, anunciávamos sua independência da indústria. Mas o fato é que também fomos incapazes de garantir a inexistência de vínculos por parte dos educadores envolvidos e alguns vieses. O problema é complexo. É óbvio apenas o fato de precisarmos conhecer experiências, avaliar resultados e buscar alternativas, multiplicando as mais efetivas e discutindo as dificuldades, sem a cortina de fumaça hoje existente.

5. MUDANÇA DE CULTURA EM TODOS OS NÍVEIS
A regulação tem de começar por quem tem mais poder e transbordar para o dia a dia do médico mais comum. Quase todas as iniciativas, até hoje pensadas em nosso meio, insinuaram regular apenas o profissional da “ponta”, deixando de fora quem toma decisões maiores e, consequentemente, as associações médicas.

Sugere-se com essas medidas que, entre outras coisas, quem ocupa cargos de lideranças teria automaticamente maior capacidade de gerenciar conflitos de interesse, o que não é necessariamente verdade, pelo contrário. Supervaloriza-se o efeito da canetinha recebida “pessoalmente” do laboratório, em detrimento dos grandes financiamentos “institucionais”.

Em suma, precisamos dar a esse debate a dimensão que ele merece e aportar a ele aquilo que a medicina tem de melhor: sua ciência e sua ética. Esse é o desafio.
Você concorda com o que foi dito nessa pesquisa? Deixe sua opinião nos comentários.

Fonte
Agência USP
CREMESP

Nayara Souto Maior e Valdemir Soares


Nayara Souto Maior - Farmacêutica Generalista, Pós-Graduanda em Gestão e Tecnologia Industrial Farmacêutica, atua como Farmacêutica Magistral.

Valdemir Soares - Farmacêutico Generalista e empresário do ramo automotivo.

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